UMA PÁTRIA PARA CHAMAR DE SUA
Leis discriminatórias impedem que uma criança ‘herde’ a
nacionalidade quando sua mãe não é cidadã do país ou quando seus pais são
imigrantes não documentados
Neste momento, ao redor do mundo, cerca de dez milhões de
pessoas não são reconhecidas como cidadãs por nenhum país do globo: não possuem
identidade civil, passaporte, nacionalidade e não podem chamar nenhum lugar de
sua pátria natal. Esse número equivale à quase totalidade da população da
cidade de São Paulo. Essas pessoas são chamadas pelo Direito Internacional de
apátridas: homens, mulheres e — o mais sério — crianças, cerca de dois terços
do total, tentam viver sem a proteção de um Estado.
Entre as causas desse fenômeno estão leis discriminatórias
que impedem que uma criança “herde” a nacionalidade quando sua mãe não é cidadã
do país ou quando seus pais são imigrantes não documentados, ou ainda
restringem o acesso à nacionalidade a determinados grupos étnicos ou sociais.
Algumas constituições não preveem a hipótese de nascimento fora de seu
território, fato cada vez mais comum no mundo globalizado. Em outras ocasiões,
a apatridia emerge como uma das faces humanas mais trágicas de processos
traumáticos de fragmentação territorial de estados nacionais, da criação de
novos, ou do desaparecimento de países inteiros imersos em guerras.
O apátrida frequentemente está tentando se refugiar de um
cenário de perseguição e de conflito. Por isso, o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados (Acnur) é o responsável internacional por conduzir
estratégias de prevenção e proteção a apátridas. O Acnur marca a passagem dos
60 anos da Convenção da ONU sobre Apatridia lançando seu Plano Global. Alguns
dos objetivos da campanha são aperfeiçoar os mecanismos normativos nacionais
que excluem determinados recém-nascidos do acesso imediato a uma nacionalidade,
suprimir o uso pelos estados de medidas discriminatórias de perda de
nacionalidade e incentivar a naturalização nos locais onde eles optaram por
residir.
No Brasil, alguns passos já foram dados para prevenir a
apatridia por meio da emenda constitucional 54/2007, que evitou que 200 mil
filhos de brasileiros nascidos fora do território perdessem a nacionalidade
apenas por não residir no país. No entanto, em um plano mais amplo, a apatridia
demanda ações complementares. Com esse diagnóstico, a Secretaria Nacional de
Justiça do Ministério da Justiça prepara, em consonância com o Plano Global do
Acnur, mudanças estruturais nas suas legislações de migração e de
nacionalidade, e está propondo um projeto de lei específico para a proteção da
pessoa apátrida e a diminuição da apatridia. A expertise brasileira na área da
proteção do refugiado — elogiada internacionalmente — cria um repertório
aplicável a um modelo brasileiro que associa medidas migratórias, apoio à
inclusão social plena e mecanismos protetivos com a possibilidade de acesso
rápido à naturalização brasileira.
A apatridia demanda também ação articulada entre países e,
por isso, será um dos temas levados em dezembro, em Brasília, à reunião
ministerial Cartagena+30, que faz referência à declaração assinada na cidade
colombiana de Cartagena das Índias em 1984 e atualiza o plano de ação decenal
do continente sobre refúgio e temas conexos. O Estado brasileiro propõe um
alinhamento de toda a região americana para uma agenda comum, capaz de dar
respostas à altura dos desafios impostos pela luta global contra a apatridia e
consolidar os direitos fundamentais de todas as pessoas em mobilidade em um
mundo cada vez mais integrado.
Paulo Abrão é secretário nacional de Justiça e Andrés
Ramirez é representante do Acnur no Brasil
Fonte: O Globo
Foto: Reuters / Jorge Lopez
0 Comentários