O MANTO DE DOM HELDER: A HERANÇA QUE RECEBEMOS DO DOM
“No dia em que o Senhor arrebatou Elias ao céu, o profeta
foi com seu discípulo Eliseu até a outra margem do rio Jordão. Ali, disse ao
seu discípulo: “Peça o que quiseres, antes que eu seja tirado de ti”.
Eliseu pediu: “Deixe-me como herança uma porção dupla do seu
espírito”. Elias respondeu: “Você está me pedindo uma coisa difícil. No
entanto, se me enxergar, quando eu for tirado de você, isso lhe será
concedido”. Enquanto estavam caminhando e conversavam, apareceu um carro de
fogo e separou um do outro. E Elias subiu ao céu em um redemoinho. Eliseu
gritava: “Meu pai, meu pai! Carro e cavalaria de Israel!”. Eliseu viu que o
manto de Elias estava caindo, o pegou e com o manto de Elias continuou a missão
do profeta” (Ver 2 Reis 2).
Quando Eliseu pede a Elias o seu mestre para ficar com o seu
espírito de profeta, Elias responde que só pode dar isso se o discípulo conseguir
vê-lo mesmo quando ele for tirado de sua presença.
Atualmente, no Brasil e no mundo inteiro, muitas pessoas e
grupos, cristãos e não cristãos, se preocupam em manter viva e atualizada a
memória de Dom Helder, porque, de certa forma para nós, ele continua vivo,
mesmo depois que nos foi tirado. Nem pedimos uma porção dupla do seu espírito
de profeta. Basta mesmo a porção que ele viveu e isso já nos renova por dentro.
Mas, isso é importante.
No Recife, o Instituto Dom Helder Camara guarda sua memória,
garante a preservação dos seus documentos e publica suas cartas e textos. Tudo
isso é importante e necessário. Mas, se ele pudesse, agora, do céu, nos dizer o
que mais deseja e o que nos pede é que
mantenhamos vivo o seu espírito profético. E para isso, temos de fazer como
Eliseu fez com Elias: recolher o seu manto. O manto do profeta era o que o
identificava como profeta. (Cf. 2 Rs 1, 8). O povo dizia que, com o seu manto
de profeta, Elias chegava a tocar na água e o rio se abria em dois para ele passar.
Eliseu usou o manto de Elias e conseguiu fazer a mesma coisa (2 Rs 2). Tentemos
brevemente recordar a herança profética de Dom Helder que podemos hoje viver e
intensificar cada vez mais.
1 – a espiritualidade helderiana
Ele nos deixou o seu exemplo de espiritualidade e os seus
escritos. E, na sua época, através de suas vigílias-cartas, ele queria envolver
as pessoas que estavam ao seu lado, a família do São Joaquim no Rio[1] e depois
a família mecejana no Recife[2].
Essas cartas- vigílias, hoje em grande parte já
publicadas[3], são antes de tudo orações, meditações nas quais Dom Helder se
refazia em sua intimidade com o Pai. Todos os dias, ele acordava às três da
madrugada e se colocava em oração de vigília. Nela, revolvia no coração a missa
diária que deveria celebrar depois, orava sobre os acontecimentos do dia
anterior e sobre os que iria viver no novo dia que estava começando. Hoje, ao
ler essas cartas, percebemos que retomar hoje a espiritualidade de Dom Helder
pede de nós que não copiando o jeito dele, mas do nosso jeito próprio e na
nossa realidade, pudéssemos experienciar também essa profunda intimidade com
Deus na oração e na meditação da Escritura.
Ao ler as vigílias- cartas do Dom, uma preocupação que
sentimos sempre presente é a preocupação dele com a formação profunda dos
leigos e leigas que formavam esse grupo de seus auxiliares, assessores, amigos.
Ele partilhava com o grupo os livros que lia, os discursos que fazia, até a
meditação pessoal que orava na eucaristia.
Atualmente, seria importante que os nossos grupos de
pastoral, nossas comunidades e seus animadores/as estivessem suficientemente
abertos a continuar essa formação permanente e interessados em buscar os meios
para mantê-la e atualizá-la sempre. Na época de Dom Helder, a Ação Católica, a
Pastoral de Juventude e grupos de Igreja tinham muitos instrumentos de
formação. Hoje, quase não temos mais isso, seja por falta de tempo, seja mesmo
porque estamos menos organizados. No entanto, é bom percebermos a importância
disso na linha do manter vivo o espírito do Dom.
2 – A constituição de
minorias abraâmicas
Com a capacidade de comunicação que Dom Helder tinha, ele
percebeu que havia formado no mundo inteiro grupos de amigos/as que desejavam
manter o projeto de vida, o modelo de Igreja aberto a toda a humanidade e de
luta pacífica pelos direitos humanos e por um mundo novo possível que ele havia
delineado e vivido.
Ele nos deixou a própria Igreja das Fronteiras onde ele
morou por 40 anos como um ponto de referência de acolhida das pessoas, de
diálogo e de abertura ao mundo. Como manter esse espírito como se estivéssemos
com o manto do profeta e pudéssemos receber o mesmo carisma?
Atualmente, o mundo e os grupos sociais necessitam muito de
quem os ajude a manter a esperança e fortalecer a chama da luta social,
pacífica, mas corajosa, profética e que vá às raízes dos problemas. Como
poderíamos, hoje, nos constituir como uma rede de entidades e movimentos
autônomos, mas, ao mesmo tempo, solidários nesse caminho do reino de Deus?
3 – O cuidado com a justiça social
Durante todo o tempo do seu ministério em Recife, Dom Helder
lançava desafios e programas para responder aos desafios da realidade. Formar
grupos como minorias abraâmicas, pressão moral libertadora e tantos outros, até
o ano 2000 sem miséria que ele lançava já nos últimos anos de vida. Ao ler
todas as cartas até agora publicadas, o programa que me parece mais sintetizar
os outros e resumir o que Dom Helder queria como nosso cuidado maior é o que
finalmente ele chamou de “Ação Justiça e Paz”. Pelo fato de ter lançado na
época da ditadura e sob forte censura do governo e mesmo de certos ambientes de
Igreja, o Dom tentou começar esse movimento conseguindo a adesão de bispos e
nomes importantes, no lugar de partir das bases, como certamente ele teria
feito se tivesse tido mais liberdade. Na época, havia pessoas que confundiam a
proposta dele com a missão da Comissão Pontifícia Justiça e Paz. Dom Helder
insistia em que as duas se complementavam. A Ação Justiça e Paz era uma ação
mais comunitária, mais sistemática (todo o tempo) e mais de base, no cuidado
com o dia a dia do povo, enquanto a Comissão Justiça e Paz envolve o nome de
pontifícia (é um organismo do papa), é uma comissão e tem como missão se
pronunciar sobre as grandes questões que envolvem a justiça e a paz. A ação é
mais prática.
Por exemplo, quando a ditadura cassou o direito de muitos
estudantes continuarem estudando, em 1969, Dom Helder pensava que a função
dessa Ação Justiça e Paz seria, além de denunciar a ilegalidade do decreto 477
do governo federal[4] (coisa que a Comissão Justiça e Paz fazia), além disso,
reunir os estudantes e ajudá-los a conseguir bolsas no exterior onde eles
pudessem concluir seus estudos.
Atualmente, em muitas cidades e capitais brasileiras, é
impressionante o número de adolescentes e jovens pobres e muitos negros que,
nos bairros de periferia, são assassinados pela ação violenta da polícia e
também de gangues que atuam nessas áreas. Talvez, pudéssemos refazer, hoje, uma
Ação Justiça e Paz que sensibilizasse as paróquias e comunidades religiosas da
nossa cidade, assim como os grupos de direitos humanos, com relação a esse
problema. Seria importante conseguir dados mais concretos dos casos que
acontecem, nomes das vítimas e datas, de forma a passar para a imprensa esses
dados mais organizados e refletidos. Sem dúvida, poderíamos provocar uma
consciência social que ainda não tem se manifestado.
Muitos outros elementos poderiam ser lembrados. A
comunicação extraordinária que Dom Helder tinha com a juventude, o apoio que
ele dava à luta dos lavradores pela reforma agrária, a consciência social e
política nacional e internacional que ele suscitava e provocava em todos nós.
São desafios para todas as pessoas que desejam prosseguir seu caminho e viver
sua profecia. O importante é viver tudo isso com seu espírito de compaixão e de
amor universal.
Para quem quiser aprofundar mais esse assunto, leia:
1 - ZILDO ROCHA, organizador. VÁRIOS AUTORES, Helder, o Dom,
Petrópolis, Vozes, 1999.
2 – MARCELO BARROS, Dom Helder Camara, profeta para os
nossos dias, São Paulo, Ed. Paulus, 2012.
[1] - São Joaquim é o nome do palácio episcopal do Rio de
Janeiro, onde, na época se reuniam as comissões de pastoral. Como, no final dos
anos 50 e começo da década de 60, Dom Helder trabalhava ali, como bispo
auxiliar do Rio, ali reunia seus auxiliares leigos que formavam para ele a
“família do São Joaquim”.
[2] - Família mecejana porque é nordestina como ele que
nasceu em Mecejana, no Ceará
[3] - Ver DOM HELDER CAMARA, Circulares Conciliares, 3
volumes, Organizador: ZILDO ROCHA,
Recife, Ed. CEPE, 2008, Circulares Interconciliares, 3 volumes, idem, 2010,
Circulares pós conciliares, Tomo I, 3 volumes, 2011, Circulares
Pós-conciliares, Tomo II, 4 volumes, idem, 2014.
[4] - O decreto 477 do governo militar em 1969 caçava
automaticamente o direito de estudar em qualquer universidade brasileira,
pública ou particular, a estudantes considerados culpados de crime de
subversão. A sentença era dada pelos militares, sem julgamento nem
possibilidade de recorrer da sentença. Muitos jovens de 18 a 25 anos tiveram
suas vidas pessoais e profissionais amputadas por essa medida arbitrária,
duríssima e impiedosa. Dom Helder fez tudo o que pôde no diálogo para que o
governo revisse isso e abrandasse a medida. Depois que percebeu que era inútil,
tentou ajudar os estudantes vítimas dessa arbitrariedade.
medida arbitrária, duríssima e impiedosa. Dom Helder fez
tudo o que pôde no diálogo para que o governo revisse isso e abrandasse a
medida. Depois que percebeu que era inútil, tentou ajudar os estudantes vítimas
dessa arbitrariedade.
Fonte: http://www.domtotal.com.br
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