Globalização da indiferença. 'O drama do humanismo desumano que estamos vivendo'
O programa Fantástico da Rede Globo exibiu
ontem à noite uma entrevista exclusiva com o Papa. O repórter Gerson Camarotti, da GloboNews,
foi recebido na quinta-feira por Francisco, na residência Assunção,
no Morro do Sumaré, onde o Pontífice ficou hospedado durante sua passagem pelo
Rio de Janeiro.
Indisciplinado com a Segurança
“Eu não sinto medo. Sei que ninguém morre de véspera. Quando
acontecer, o que Deus permitir, será. Eu não poderia vir ver este povo, que tem
um coração tão grande, detrás de uma caixa de vidro. As duas seguranças (do
Vaticano e do Brasil) trabalharam muito bem. Mas ambas sabem que sou um
indisciplinado nesse aspecto.”
Por mais simplicidade
“Nosso povo exige a pobreza de nossos sacerdotes. O povo
sente seu coração magoado quando nós, as pessoas consagradas, estamos apegadas
a dinheiro. Realmente não é um bom exemplo que um sacerdote tenha um carro de
último tipo, de marca. É necessário que o padre tenha um carro, mas tem de ser
um carro modesto. O carro que estou usando aqui é muito parecido com o que eu
uso em Roma. Simples, do tipo que qualquer um pode ter. Penso que temos que dar
testemunho de uma certa simplicidade – eu diria, inclusive, de pobreza.”
A moradia do Papa no vaticano
“Quanto à decisão de viver em Santa Marta, não foi tanto por
razões de simplicidade. Porque o apartamento papal é grande, mas não é luxuoso.
Mas a minha decisão de ficar em Santa Marta tem a ver com o meu modo de ser.
Não consigo viver só, não posso viver fechado. Preciso de contato com as
pessoas, então, fiquei em Santa Marta ‘por razões psiquiátricas’. Para não ter
de estar sofrendo essa solidão que não me faz bem. É para estar com as pessoas.
Santa Marta é uma casa de hóspedes em que vivem uns 40 bispos e sacerdotes que
trabalham na Santa Sé. Tem uns 130 cômodos, mais ou menos. Sacerdotes, bispos,
cardeais e leigos que se hospedam em Roma ficam lá. Eu como no refeitório com
todos. E a gente sempre encontra gente diferente, e isso me faz bem.”
Perda de fiéis pela igreja
“Não saberia explicar esse fenômeno. Vou levantar uma
hipótese. Para mim é fundamental a proximidade da Igreja. Porque a Igreja é
mãe, e nem você nem eu conhecemos uma mãe por correspondência. A mãe... dá
carinho, toca, beija, ama. Quando a Igreja, ocupada com mil coisas, se descuida
dessa proximidade, se descuida disso e só se comunica com documentos, é como
uma mãe que se comunica com seu filho por carta. Não sei se foi isso o que
aconteceu no Brasil. Não sei, mas sei que em alguns lugares da Argentina que
conheço isso aconteceu.”
Globalização da indiferença
“Hoje em dia há crianças que não têm o que comer no mundo.
Crianças que morrem de fome, de desnutrição. Há doentes que não têm acesso a
tratamento. Há homens e mulheres que são mendigos de rua e morrem de frio no
inverno. Há crianças que não têm educação. Nada disso é notícia. Mas quando as
bolsas de algumas capitais caem três ou quatro pontos, isso é tratado como uma
grande catástrofe mundial. Esse é o drama do humanismo desumano que estamos
vivendo. Por isso, é preciso recuperar crianças e jovens, e não cair numa
globalização da indiferença.”
Corrupção no Vaticano
“Agora mesmo temos um escândalo de transferência de 10 ou 20 milhões
de dólares de um monsenhor. Belo favor faz esse senhor à Igreja, não é? Mas é
preciso reconhecer que ele agiu mal, e a Igreja tem de dar a ele a punição que
merece, pois agiu mal. No momento do conclave, antes temos o que chamamos
congregações gerais – uma semana de reuniões dos cardeais. Naquela ocasião,
falamos claramente dos problemas. Falamos de tudo. Porque estávamos sozinhos, e
para saber qual era a realidade e traçar o perfil do novo Papa. E dali saíram
problemas sérios, derivados em parte de tudo o que vocês conhecem: do Vatileaks e
assim por diante. Havia problemas de escândalos. Mas também havia os santos.
Esses homens que deram sua vida para trabalhar pela Igreja de maneira
silenciosa no Conselho Apostólico.”
Protestos dos jovens
“Com toda a franqueza lhe digo: não sei bem por que os
jovens estão protestando. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto: um jovem que
não protesta não me agrada. Porque o jovem tem a ilusão da utopia, e a utopia
não é sempre ruim. A utopia é respirar e olhar adiante. O jovem é mais
espontâneo, não tem tanta experiência de vida, é verdade. Mas às vezes a
experiência nos freia. E ele tem mais energia para defender suas ideias. O
jovem é essencialmente um inconformista. E isso é muito lindo! É preciso ouvir
os jovens, dar-lhes lugares para se expressar, e cuidar para que não sejam
manipulados.”
Idolatria ao dinheiro
“Esse mundo atual em que vivemos tinha caído na feroz
idolatria do dinheiro. E há uma política mundial muito impregnada pelo
protagonismo do dinheiro. Quem manda, hoje, é o dinheiro, e isso significa uma
política mundial economicista, sem qualquer controle ético. Um economicismo
autossuficiente que vai arrumando os grupos sociais de acordo com essa
conveniência.”
Descarte de jovens e idosos
“Quando reina esse mundo da feroz idolatria do dinheiro, se
concentra muito no centro, e as pontas da sociedade, os extremos, são mal
atendidos, não são cuidados e são descartados. Vimos muito claramente como se
descartam os idosos. Não servem, não produzem. Os jovens também não produzem
muito. É uma ponta em vias de ser descartada. O alto percentual de desemprego
entre os jovens na Europa é alarmante. Para sustentar esse modelo político
mundial, estamos descartando os extremos: os que são promessa para o futuro e
os idosos, que precisam transferir sabedoria para os jovens. Descartando os
dois, o mundo desaba.”
Diferentes religiões
“Creio que é preciso estimular uma cultura do encontro em
todo o mundo. Acho que é importante que todos trabalhemos pelos outros, podar o
egoísmo. Um trabalho pelos outros segundo os valores de sua fé. Cada religião
tem suas crenças. Se há uma criança que tem fome, que não tem educação, o que
deve nos mobilizar é que deixe de ter fome e que tenha educação. Se essa
educação virá dos católicos, dos protestantes, dos ortodoxos ou dos judeus, não
importa. O que me importa é que o eduquem e que saciem a sua fome. Temos de
chegar a um acordo quanto a isso. Hoje a urgência é de tal ordem que não
podemos brigar entre nós à custa do sofrimento alheio. Sobretudo, hoje em dia,
urge a proximidade.”
A íntegra da entrevista pode ser vista aqui
Fonte: IHU
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