Nestes dias um amigo contou-me que seu colega de trabalho no serviço público havia comentado que, passados alguns dias das recomendações de distanciamento social e com o aumento do número de casos da Covid-19, não havia ouvido falar de nenhum caso do coronavírus entre os moradores de rua. Percebendo a intencionalidade do seu interlocutor, esse amigo respondeu: “Sabe por que os moradores de rua não vão pegar o coronavírus? Porque ninguém pega em suas mãos, porque as pessoas já ficam a um metro e meia de distância deles... Passamos a quilômetros de distância e viramos o rosto para não ver... Eles são invisíveis para o mundo, mas Deus os enxerga de uma forma inexplicável”. 

Sirvo-me deste episódio para iniciar algumas reflexões acerca da população de rua nestes tempos de pandemia, pois o relato me parece representativo da realidade desse povo. Uma realidade sempre dura, que tem afetado cada vez mais pessoas nos últimos três anos, e que se torna ainda mais complexa no contexto do novo coronavírus. Mesmo com toda essa dureza, ainda brotam sinais de esperança, tal como o broto que teima em nascer na terra seca: basta um pouquinho de água para revelar a face bondosa do Deus Criador que não se esquece nem abandona seu povo.



A situação de invisibilidade que as pessoas em situação de rua passam cotidianamente poderia ser facilmente associada à dos leprosos do tempo de Francisco de Assis. Todos fugiam deles pelo medo do contágio de uma doença até então sem tratamento e que deformava não só física como moral e socialmente. A lepra era sinal do pecado e da morte, consequentemente, da condenação divina. Para o jovem Francisco, também formado naquela sociedade, “era insuportável olhar para leprosos”. Ele só rejeita essa concepção quando se aproxima, conduzido pelo Senhor ao meio deles para “fazer misericórdia”. Quando toca a carne chagada do leproso, quando o abraça e beija, quando se faz um deles recebendo também a invisibilidade da sociedade, é então que Francisco sente a presença do próprio Senhor. E aquilo que lhe parecia amargo se converte em doçura. 

De forma misteriosa Deus nos aproxima desses leprosos ainda hoje quando estamos abertos à sua graça. Recordo o primeiro dia em que fui às visitas coordenadas pela Pastoral do Povo da Rua na Rua do Imperador, no Centro da cidade do Recife. Trata-se de um local conhecido como de maior concentração dos ‘moradores de rua’. Ali também se situam o Convento e a Igreja dos Franciscanos (OFM), sede da Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil, e a sede da Venerável Ordem Terceira do Recife (OFS). Bem ali, naquela rua franciscana, estavam os leprosos... e um jovem franciscano com medo de me aproximar daquelas pessoas. Aos poucos fui vendo os demais agentes da Pastoral tratando-os como são, como pessoas, sentando-se na calçada, sobre o papelão, para conversar como bons e velhos amigos, para partilharem a vida, ouvir as história de como foram parar na rua, contar da situação difícil que era tirar os documentos que haviam sido roubados ou mesmo falar de sua fé, repetir um versículo da Bíblia que lhe dava forças, revelando a presença de Deus em sua vida... E no final da visita, o abraço, o agradecimento, o boa noite e um até logo.


Essa aproximação tem sido o primeiro passo para tornar estas pessoas menos invisíveis socialmente. A partir da convivência, a Pastoral vem buscando fortalecer um grupo de pessoas em situação de rua que estão presentes em fóruns, comitês, conselhos, audiências e outras instâncias de participação nas quais possam se fazer ouvir como voz das ruas no que diz respeito às políticas públicas específicas. Um trabalho árduo, cheio de altos e baixos, mas que nos faz criar laços de fraternidade que se expressam no cuidado, na alegria do reencontro, na amizade que quer o bem do outro. Dessa maneira todo medo e preconceito se desfaz, pois estamos juntos no mesmo barco. 

Nestes tempos de pandemia, as violações aos direitos fundamentais que sofrem a população de rua – falta de moradia, alimentação adequada, educação formal, trabalho digno e segurança – têm se agravado ainda mais. Com a diminuição do número de pessoas circulando pelo centro da cidade e o fechamento do comércio, diminuíram também a possibilidade de trabalho informal, como venda de água e lanches, que lhes garantiam alguma renda, bem como a oferta de alimentação por parte de grupos solidários que faziam este trabalho quase sempre à noite. A união de esforços de alguns desses grupos da sociedade civil com a colaboração de muitos corações sensibilizados tem garantido a alimentação necessária para a população de rua. Em todo o Brasil a mobilização tem sido bonita de se ver e vai além. São diversas iniciativas de cuidado como abertura de locais para banho e higiene pessoal, instalação de lavanderias comunitárias e pias em locais públicos, doação de kits de higiene e álcool gel, entre tantos outros... Uma ação emergencial que precisa ser feita. 

Mas uma outra luta ainda está sendo travada, inclusive com ações judiciais, para que os municípios possam garantir o abrigamento temporário destas pessoas com o crescimento dos casos da Covid-19. Como se pode recomendar alguma medida de proteção às pessoas em situação de rua sem falar no abrigamento? Se a recomendação de quarentena visa preservar a vida e evitar o colapso do Sistema Público de Saúde, não é difícil imaginar, num contexto discriminatório em que vivemos, como poderão ser tratadas as pessoas em situação de rua infectadas pelo novo coronavírus.


As pessoas em situação de rua precisam ser vistas como pessoas, com direitos e dignidade. A ação solidária de dar-lhe um prato de comida é importante e necessária, mas precisa ser vista como ela é, como algo urgente e emergencial que não devolve integralmente sua dignidade humana. Por isso caridade cristã não pode parar neste ponto, precisa ir além. A vida pede mais, a vida é mais! Nosso cuidado com os mais pobres deve se expressar na proximidade, na escuta, na recuperação dos sonhos adormecidos no coração e na mente de tanta gente ferida, na organização para a transformação das estruturas sociais que excluem, oprimem e negam os direitos conquistados. São atitudes que emancipam o outro, gestos que nos colocam em pé de igualdade, como irmãos e irmãs, ações que restauram a fraternidade tão cara a Francisco de Assis. 

Nestes tempos em que se recomenda a quarentena e o distanciamento social para evitar o contágio da Covid-19, o Senhor nos interpela à criatividade de nos fazer próximos daqueles que mais sofrem. A maioria das pessoas em situação de rua estão nesta condição porque romperam seus laços familiares, tiveram algum desequilíbrio financeiro e não contaram com a compreensão ou apoio necessário naquela encruzilhada de sua existência. Sem vislumbrar outras alternativas, as ruas lhes pareciam a única saída. Talvez tenham lhes faltado alguém que tenha se feito “próximo”, alguém como o bom samaritano que viu o que estava ferido, caído à beira da estrada, teve compaixão e cuidou dele (Lc 10, 33-34). 

Hoje Francisco de Assis nos convida novamente a treinar o olhar para ver os que estão à margem da sociedade, invisibilizados pelo nosso olhar quase sempre contaminado por estereótipos tantas vezes justificáveis. Os leprosos de hoje, os chagados social e moralmente, os que recaíram em suas várias tentativas de se levantar esperam por nós! Eles podem estar bem ao nosso lado, em nosso caminho cotidiano e tão rotineiro que as vezes não enxergamos, “mas Deus os enxerga de uma forma inexplicável”. A presença do Senhor Ressuscitado nos encoraje, como pede o Papa Francisco, a “um ‘contágio’ diferente, que se transmite de coração a coração, porque todo o coração humano aguarda esta Boa Nova. É o contágio da esperança”.

Frei Marcos Carvalho, OFM

Teólogo, jornalista, mestre em comunicação e assessor da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de Olinda e Recife


Fotos: Facebook da Pastoral do Povo de Rua de Recife/PE